domingo, 17 de abril de 2011
O Anjo Branco.
Anjos brancos também engolem os cacos do próprio espelho interior. Muito recentemente, vi um anjo de aparência feminina, extremamente angustiado e fragilizado, mastigar e engolir com vontade os cacos de vidro de espelho interior, que agora estava quebrado. Esses cacos lhe feriam, lhe sangravam a boca de uma forma extremamente árdua, mas esse anjo não conseguia parar de mastigar, se multilar. Ao meu ver, ele comia aqueles cacos não por vontade, mas por necessidade.
Os olhos desse anjo derramavam lágrimas tão pesadas, que também eram de sangue. Um sangue vermelho turvo, doentio, misturado ao branco daquele uniforme angelical de aparência tão serena e doce. Aparência serena que escondia uma alma fervilhante, entrando em erupção, prestes a explodir todos os espelhos interiores.
Só quem conhece a dor de não conseguir segurar aquilo que mais ama é capaz de entender a necessidade que esse anjo tinha de comer vidro, de se ferir. Só quem conhece a sensação de ter perdido a própria existência sabe o que é saborear o sangue expesso que caia dos olhos até boca frágil e trêmula. Como quis cuidar daquele anjo. Mas como eu poderia? São os anjos que cuidam dos seres humanos. Tentando ajudar, perguntei a ele o que o fazia sentir-se daquela forma vorazmente desesperada. Para minha surpresa, ele conseguiu falar e me respondeu.
- Eu disse ao meu amado que morreria se ele me deixasse.
Eu continuei indagando:
- E o que ele respondeu?
- Disse que era para eu morrer, então.
Senti na pele a dor daquele anjo. Todos os meus fios de cabelo se arrepiaram. Pedi para que prosseguisse.
- Eu disse a ele que se me deixasse, ele nunca mais iria me ver. E ele respondeu que tudo bem. Que eu havia me excluído da vida dele.
Foi aí que descobri que anjos são mais humanos que os próprios humanos. Sofrem por amor e carregam a vida nas costas. Gritam, desesperados, como pedaços de estrelas sem-mortas, lutando pela vida, ao cairem sobre algum planeta distante e abandonado.
- É por isso que eu como os cacos do meu espelho - completou o Anjo Branco, bruscamente manchado de sangue - Para ver se a dor exterior consegue disfarçar a dor que sinto por dentro. Não tem adiantado, mas vou continuar tentando. Enquanto a lembrança das minhas mãos em busca de mãos que queriam, desesperadamente, fugir de mim existir; enquanto o meu grito não conseguir sair; enquanto a lembrança das minhas asas caindo e das minhas penas se tornando cinzas existir; enquanto eu existir; vou procurar curar essa dor que sinto por dentro, com a dor que sinto por fora.
E o Anjo Branco foi-se embora.
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