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terça-feira, 26 de outubro de 2010


Terça-Feira

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Terça-Feira de manhã, e eu estou em casa. Não sei porque estou aqui. Provavelmente não escutei o despertador, e quando dei por mim, estava enrolada na bagunça dos meus lençóis já às 7:30 da manhã, enquanto deveria estar no trabalho, monitorando jovenzinhos preguiçosos em lições ridículas de Inglês.  Na verdade, eu não dou a mínima para aquele trabalho medíocre. De mediocridade, já basta a minha. Além de tudo com a micharia do meu salário mal dá para pagar o aluguel dessa espelunca em que vivo.

Moro em um quarto, um pequeno quarto dentro de uma casa grande, antiga, maltratada, suja e descascada. Parece que dona Maria Isabel nunca passou um pano nessas paredes desde que se mudou para cá, no final dos anos 1950. No mínimo, desde que ficou viúva, em 1979. Ela poderia pagar uma faxineira para limpar esse muquifo de vez enquando, mas ela nunca fez isso. Talvez seja pelas condições em que a casa se encontra que o aluguel dos quartos é tão barato. Dos 5 quartos da casa, apenas 3 são ocupados. O meu, o de dona Maria Isabel ( a proprietária) e o de Bertha, uma moça homossexual que estuda Teatro do outro lado da cidade. Elas quase não ficam em casa, quase não as vejo (Até acho bom,porque falar não é uma das minhas atividades favoritas). No final das contas, acho que dona Maria Isabel gosta mesmo dessa bagunça.É como se fosse uma espécie de caos exalado que reflete a imagem interior dela; caos que acaba transmitido para mim também. Esse caos interior e essa casa que nem é minha são tudo o que possuo nessa cidade louca, devoradora. Passo boa parte do meu tempo isolada por essas paredes amarelas, sujas e descascadas.

    Terça-Feira. 7:52 da manhã. O dia está cinza. Não faz frio e nem calor, talvez um pouco mais frio do que calor. Costumo dizer que Outubro é um mês morno por aqui, quase em todos os sentidos. De vez enquando aparece uma chuva para nos contemplar, mas na maioria das vezes, minha companhia é esse tempo branco fechado, quando o céu está com cor de gelo acumulado no canto do congelador.

    Depois que acordei (assustada por estar em casa) vesti, por cima do pijama velho, surrado e curto, um moleton preto, mais velho e mais surrado ainda. Pertenceu a um ex namorado, o Rômulo, por isso fica enorme em mim, quase um vestido. Gosto de usá-lo. Apesar de me sentir menor, mais magra e soturna do que já sou, me sinto protegida. No fundo, gosto de proteção, e é como se ninguém tivesse a capacidade de me assustar. Calçei as velhas "havaianas" que já me esperam na quina da porta e fui prepar um café.

A bagunça da pia era enorme. Muitos copos, pratos, talheres estacionados. Normal ficar daquele jeito, ainda é terça-feira, e uma possível arrumação virá só na quinta.  Demorei a achar uma xícara limpa, mas encontrei uma pequenina, detalhadamente pintada e clássica, com o nome "Leopoldo" gravado nela. Pertencia ao falecido marido de dona Maria Isabel, o único que ela realmente amou. Não gosto do meu café. Ele é muito forte. Prefiro o de dona Maria Isabel, porque lembra o dá minha avó. Minha querida avó que hoje em dia mora tão longe de mim... O café de Bertha também é bom, nem tão doce e nem tão forte, na medida certa. Eu não consigo preparar um café assim. Nunca fui boa em equilibrar as coisas. Sempre peco pelo excesso; na dúvida, sempre excedo. Não tenho cautelas, a vida não me deu tempo para aprender a ser cautelosa.

Sentei na varanda da cozinha, encostei a xícara de café no chão por um minuto e acendi um cigarro.Já tentei parar de fumar duas vezes, mas não funcionou. Gosto do gosto cigarro mesclado ao café. Talvez por me lembrar o gosto dos beijos de Rômulo, mas como Rômulo é passado, eu já quase o esqueci.
Terça-Feira, manhã..Eu deveria estar trabalhando. Estou aqui até agora, sentada na varanda, contemplando o jardim mal cuidado de dona Maria Isabel, que talvez tenha sido um pouquinho privilegiado pela chuva dessa madrugada. Esse jardim é tão sem graça, que é uma ofensa chamá-lo de jardim. Alias, pode se parecer com qualquer coisa, desde um pequeno amontoado de plantas à alguma decoração natalina sintética, daquelas que encontramos em lojinhas espalhadas pelo centro da cidade, mas está longe de parecer um jardim de verdade, como aqueles que existem nas praças da minha cidade natal. Mas por mais feio que seja esse jardim, os passarinhos não deixam de visitá-lo, ciscar por ele.Não deixam de se doar para o jardim. Gosto dos animais por isso: Eles não escolhem frequentar um lugar por sua aparência.

Não gosto de falar, mas gosto de escrever. Acho que vou trocar de curso na Faculdade. Deixarei de lado as Ciências Biológicas e tentarei Letras. Acho que nasci para ser escritora, acho que nasci para gritar através de um papel e uma caneta. Sou como os passarinhos. Não escolho o papel nem a caneta. Apenas faço a visita que me é necessária, e me deixo escorrer. Não vou pedir demissão do meu emprego medíocre, vou dar a desculpa de que acordei com enxaqueca, o que não será totalmente mentira. Eu precisava dessa manhã de hoje. Terça-Feira. Serei escritora, e tenho muito sobre o que escrever aqui mesmo, nesta casa suja e quase abandonada. O silêncio, a escuridão, as histórias de dona Maria Isabel. E começarei hoje, de uma vez por todas. A vida não me dá tempo para cautelas.

Deborah Vebber.

4 comentários:

Pobre esponja disse...

Letras, minha opinião, é para formar professores.Pelo menos a que tranquei...
Dialogar é Filosofia, Sociologia.
Creio que a toada do seu texto teve um tom detédio proposital.
Maravilha.

abç
Pobre Esponja

VicciVic disse...

essa faz jus ao termo blog! gostei muito, parabéns mesmo pelo bom gosto, você escreve bem e o blog tá com um layout muito legal
continue assim

www.despauterio.com

Gabriel Lemos disse...

bem legal esse texto tb te sigo
valeu


http://curiosomundodorock.blogspot.com/

Juan Moravagine Carneiro disse...

Às vezes nem eu mesmo sei quem eu sou... Muito obrigado pela visita e pelas palavras no Rembrandt...

Ando meio sem tempo e com um problemas...por isso não estou conseguindo visitar todos os blogs que gostaria...

gosto muito do seu espaço também

bj